Cabo de Guarda-Chuva

arrependimento

Ando pegando meio pesado, né? Meio amargo, sei lá. Sabe aquele gosto ruim na boca que a gente brinca quando fala que está com gosto de cabo de guarda-chuva? Pois é, estou com isso, mas na mente, não na boca.

Muita preocupação acumulada dos últimos quatro, talvez cinco anos acabou estourando na saúde, o que causa ainda mais preocupação. Nosso Ego-Sistema é impiedoso: Tudo é somatizado. Carga emocional é uma porcaria, só serve para nos estragar.

As coisas têm significados diferentes para cada indivíduo. Muita gente me fala, ah, você está se preocupando à toa, isso se resolve, minha médica diria, pega leve, lembre-se do que já passou… outras vezes é meu Espelho quem avisa. Sim, sou adepto e defensor da Terapia do Espelho. Mas já aviso que é doloroso e Ele é completamente insensível.

Agora mesmo aprontou uma. Foi Ele quem puxou conversa dessa vez olhando diretamente em meus olhos:

– Cara, já vi você em dias ruins, mas parece que hoje algo te atropelou porque seu estado é deplorável. Foi caminhão betoneira ou um transatlântico desses… Qualquer Coisa Of The Seas?

– É, hoje a coisa foi feia mesmo. Pegou de jeito.

– Quer falar a respeito, estou aqui à sua disposição.

– Descobri que arrependimento mata.

– Como é que é? As pessoas não dizem por aí que se ele matasse…

– Mata sim. Lentamente, mas mata.

– Está morrendo? O que houve, se abre, agora fiquei preocupado.

– Morrendo estamos, né, desde o dia em que nascemos. O que pegou foi acúmulo de arrependimento. E ele mata sim, tira vidas nos deixando vivos.

– Sei como é. Um arrependimento aparece e se une a outro e assim vai, em cascata.

– Exato.

– Onde começou?

– Vixi, vem de longe, anos. Maybe décadas.

– Isso explica muita coisa.

– Demais.

– Vai, desembucha, homem.

– Assim, aqui na frente de todo mundo? O que vão pensar?

– Que você é normal, humano, que sofre, erra como qualquer outra pessoa. Que tem angústias…

– Isso sempre deixei claro, nunca neguei.

– Sei disso, mas não enrola e conta…

– Bom, tem material anterior, menos intenso, mas que me lembro grave mesmo, um divisor de águas,  foi aquela escolha errada naquele dia simbólico em fevereiro de 92 quando num rompante eu decidi que era melhor…

– Caramba… foi aquela decisão que desencadeou tudo isso?

– Exato, foi depois desse ponto que tudo foi alterado profundamente…

Enquanto me barbeava desabafei… e durante minha “consulta”, como quase sempre acontece para quem se joga na frente do Espelho, a Catarse foi inevitável.

As imagens das escolhas subsequentes, bem como suas inevitáveis consequeências foram passando pela mente como um filme antigo, machucado pelo tempo.

A voz embargou, as palavras arranhavam a garganta enquanto saíam e a respiração se alterou significativamente.

Mas quem denunciou uma vida incompleta foram os olhos.

Quando finalizei meu depoimento o cara lá do Espelho disse, sem dó:

– É, acho que tem razão, nesse sentido aí que você falou é bem incompleta sim.

– Pois é, também acho. E para piorar, hoje apareceu a cereja do bolo.

– Porque pior do que sofrer é fazer sofrer, não acha?

– Por que faz essas perguntas? Você me odeia?

– Depois dessas lembranças todas, quer mesmo saber? Sim, muito! Olha como tudo poderia ter sido diferente. Agora responda minha pergunta.

– Acho sim, claro. A gente sofre duas vezes.

– Pede então de uma vez.

– Pede o que?

– O que ficou faltando, vai, seja humilde, corajoso… pede.

– Peço desculpas a todo mundo por tudo que fiz. É isso?

– É claro que é, mas… você não é tão burro assim, ainda que tenha sido bastante.

– Entendi. E aí, você me perdoa?

– Desde que prometa não me fazer mais nenhum mal… talvez.

MM

Uma resposta em “Cabo de Guarda-Chuva

  1. Não me rcordo, em minha longa jornada de vida, como leitora e professora de Filosofia, ter lido algo tão forte, profundo, signicativo e simbólico como este texto. Nossas referências são de um passado distante e seus textos são de um presente perturbador.
    Perdoar-se por ter feito os outros sofrer e a si próprio.
    Angústia sem igual, avassaladora. Carga emocional para dezenas de consultas terapêuticas.
    Parabéns novamente pela coragem.
    Obrigada por permitir a mim e a seus leitores um texto impecávelmente escrito.
    Você tem sensibilidade e muita coragem em expor sobretudo a si mesmo. Embora mostre como eu e tantos outros somos.
    Joga em nosso mundo uma realidade que tentamos esconder.
    Obrigada do fundo de minha alma.
    Estou em prantos por você e por mim. Eu precisava de um texto desse porte porque estou passando por angústias similares.
    Não se vê por esta rede mundial de computadores sua profundidade.
    Espero que supere este momento e nos ajude por muitos e muitos anos a viver a vida.
    Cuide de sua saúde porque precisamos de você.
    Nathalia R. Duarte.

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